2 de nov. de 2015

Sequoia Throne [O trono de Sequoia] - Protest the Hero





Vocês vieram para matar, ou chegaram para morrer?
Pensamos mesmo que as espaçonaves do céu iriam descer?

Curvariam a luz, radiando para além do espaço-tempo
só pra ver o nosso medo refletido em seus oleosos olhos negros?
A nos caçar como predadores, como sugerem nos filmes o tempo inteiro?

Não são eles os que viajam para nos matar,
que vem pra nos encher de chumbo,
Não são eles os que nos odeiam,
e não são os que mutilam nossos animais,
ou que viajam pelas estrelas,
Eles não são aqueles que nos causam o mal – Nós que somos!
Somos nós, somos nós, somos nós!!

Nós somos natureza-morta, sangues-frio,
e nós não sentimos nada.

Infernalmente convictos do paraíso

Enquanto nossos homens justos estão embalando cadáveres cheios de fé e de merda
Nós somos natureza-morta

Embalando cadáveres cheios de fé e de merda,
eles discursam sobre um futuro além da lua,
para trazer mais um outro planeta à espúria.
Descobrir vida pacífica e tocar nosso tambor de guerra para afiná-la.
A menos que as minhas rezas sejam atendidas, muito em breve nosso fim será a vala.

-


Acho daora as analogias que fizeram pra abordar a prepotência e o poder de (auto)destruição dos homens, principalmente dos mandachuvas do mundo e seus seguidores: através da imagem sobre o diferente que estes constroem, imagem que é sempre de hostilidade. Na música, a banda usa, como se fosse uma alegoria, os alienígenas como expressão desses diferentes, e julga: “se alienígenas quisessem dar as caras por aqui, eles não iriam querer”. Afinal, uma civilização que conseguiria “curvar a luz, radiar para além do espaço-tempo”, que teria tecnologia para isso (algo extremamente longínquo para um humano atingir... chegar à velocidade da luz etc.), não viajaria todo o universo só pra chegar aqui nos assustar e nos comer, “como nossos filmes sugerem o tempo inteiro”.
A música começa com essa clara menção aos filmes hollywoodianos sobre essas coisas. Pela lógica, não faz o menor sentido que aliens viriam para cá nos aterrorizar, não temos nada o que oferecer a eles, a não ser desgraça: “vocês chegaram pra matar ou chegaram pra morrer?”. A indústria cultural norte-americana, e dentro dela os filmes de Hollywood, muitas vezes (se não sempre) se mostra como disseminadora de ideologias veladas, disfarçadas por historinhas em primeiro plano que entretém e divertem. Por trás desses filmes nos quais aliens invadem os EUA, causam uma destruição lascada, e a civilização norte-americana diante desse inimigo em comum se vê unida, dizimando esses invasores predadores com seu poderio militar hegemônico, há uma ideologia velada. Os aliens na verdade representam “a ameaça que vem de fora”. No filme, esse fora é o universo em si; na vida real, a ameaça são os muçulmanos, os “terroristas”, os imigrantes latinos etc. Ou seja, através desses filmes, pinta-se um sentimento de nacionalismo e supremacia, um sentimento de “proteção daqueles que estão dentro da fronteira (dos EUA)”. Além, é claro, de se fomentar também uma cultura do medo, tão significativa para a terra do Tio Sam.
Para além desse sentimento construído, há a explicitação de como o homem, pelo menos o ocidental “civilizado”, não consegue estabelecer trocas produtivas com seus diferentes. Explicita-se, ainda, que enquanto nossa indústria está pintando que é o de-fora-da-fronteira quem nos causa todo o mal, lá estão os de dentro se autodestruindo na vida real. “Eles não são aqueles que viajam para nos matar, que chegam pra nos encher de chumbo, não são quem nos odeia, nem quem mutila nossos animais... Nós é que somos”. Nós é que somos responsáveis por nossa própria desgraça, em qualquer sentido que se esteja falando – por isso a banda dá vários aspectos de destruição.
Reforçando, esse “nós”, eu-lírico, aqui são os homens ocidentais “civilizados”, principalmente norte-americanos, prepotentes, loucos, egoístas, etc.; a própria banda deixa claro de quem está falando: “Enquanto nossos homens justos (our righteous man – também homens direitos, ou homens de direto) estão embalando cadáveres cheios de fé e de merda / Nós somos natureza-morta”. São esses que se dizem (e acabam sendo mesmo?) donos do mundo, os senhores que decidem os rumos da Terra e da civilização. Homens justos é nitidamente irônico, pela última estrofe da música pode-se ver isso (ela será abordada no fim do texto).

Eles estão “embalando os cadáveres cheios de merda e fé”; a frase tem sentido duplo, mas complementar: embalar os cadáveres, usando de seus discursos ricos em bosta e em fé vazia e forjada, significa padronizar seguidores – empacota-los – que cegamente os seguirão (cegamente pois estão embalados / empacotados / em cabrestos), por isso cadáveres. Complementando o sentido, esses “homens justos” também são aqueles que geram cadáveres reais, como consequência de suas políticas de guerra.
A expressão que sintetiza isso tudo: nós somos natureza morta. O legal do inglês é que na própria expressão há a palavra “vida” pra expressar “morta”: “we are still-life”. Deixa a coisa ainda mais irônica... Nós somos natureza morta. Ao vincular aos humanos vivos uma expressão usada na pintura para representações de seres inanimados, a banda potencializa o termo e o ressignifica: só parecemos ter vida, mas nosso sangue é frio, somos apenas representações, afinal tratamos a nós mesmos como natureza-morta; e acabamos sendo. Tenho minhas dúvidas se nesse trecho se referem só aos “righteous men” mesmo ou se a uma grande parte da humanidade, frutos dessa vida sem vida da era digital-consumista-individualista... Mas continuando pra não ir pra fora da música:
Um verso agora dos que acho mais interessantes na música: “Infernalmente convictos do paraíso”. Foi bem difícil achar uma tradução que desse conta do jogo de palavra usado no original: “Hell-bent on heaven”. A expressão “Hell-bent” significa “extremamente convicto; obcecado”, mas possui a palavra “Hell – inferno” dentro dela; “heaven” significa paraíso. Enfim, o verso faz esse lance com as palavras pra mostrar que essa obsessão pelo paraíso (e isso é bem coisa de estado-unidense mesmo) leva a uma busca inatingível por ele, por meios infernais, ou seja, de destruição em massa. Destruição do mundo, dos humanos, da vida, tudo. Usei o termo “convictos” pois vários loucos estado-unidenses se auto intitulam como moradores da “terra prometida”; e como no original usam o conectivo “on”, pode sugerir, grosso modo, algo como “obcecados no paraíso”, traduzi então como “infernalmente obcecados do paraíso”, para incluir os dois sentidos: tanto o da busca do paraíso com base em destruição, como o do se considerar no paraíso mas sempre com comportamento infernal.

Passando adianta na música, chegamos à última estrofe. Pra mim, a parte mais foda, tanto do som, quanto da letra, acaba sendo meio que uma conclusão perfeita. “Embalando cadáveres cheios de fé e de merda / eles discursam sobre um futuro além da lua / para trazer mais um outro planeta à espúria”. É um tanto auto-explicativo, mas vou comentar. A ironia aqui é precisa: o homem, que só sabe causar sua própria desgraça e mal consegue limpar a bunda, discursando sobre um futuro pra além da lua; conquistar outros planetas, só pra leva-los a merda como fez com a Terra, planeta-mãe. Discursos de grandeza, conquista do universo, quando na verdade ainda é um ser tão pequeno. Tudo aqui é típico do comportamento humano: é bem o que é a relação de parasitismo:  usufrui de tudo o que pode, degradando o hospedeiro (a Terra), pois depois é só migrar pra outro lugar que tá tudo certo! Tem sempre um lugar/alguém pra explorar!
“Descobrir vida pacífica e tocar nosso tambor de guerra para afiná-la”. Essa imagem é sensacional. “Afinar uma vida” pacífica com o tambor de guerra; novamente a ironia, afinal isso seria desafina-la. Mas o que fica massa é que a banda usa um termo que realmente é usado no ramo da música, afinar um tambor – e o processo de afinação é muito melhor se feito em conjunto. Essas coisas vão de encontro entre si dentro desse verso. E pra finalizar, os versos seguintes: “A menos que as minhas rezas sejam atendidas / muito em breve nosso fim será a vala”. O interessante aqui é o uso de “rezas”, ou seja, eleva ainda mais o pessimismo, afinal quando sua única chance é que as preces sejam atendidas, é que a coisa tá mesmo feia...

Pra finalizar a análise, faltou o título da música, que diante de tudo que foi abordado aqui, ganha uma significação bem robusta, que contribui pra ironia geral do texto. “O trono de Sequoia”. Trono, é claro, denota realeza, grandeza, reinado. “Sequoia” é um tipo de árvore, na verdade um gênero de árvore, que hoje conta apenas com uma espécie sobrevivente (até onde se sabe), nativa de onde? Claro, dos EUA! São árvores encontradas principalmente na Califórnia; na música, o termo Sequoia é a dica pra ver que esse reinado que se critica o é norte-americano especificamente, carregando uma ironia questionadora, afinal, que reinado desgraçento é esse? Mais informações: é nos EUA que se encontra a árvore mais alta do planeta, que é dessa espécie, e possui aprox. 115m de altura. Ela foi nomeada de “Hyperion”; nada prepotente, né?! As referências não param por aí: essas árvores podem viver durante milhares de anos; tempo que, se deixar, os EUA vão tar aí reinando...

Enfim, essa á uma música que de primeiro momento parece meio simples ou boba, parece que fala de ET, espaçonave, mas que ao trazer essas referências mais profundas, dá pra curtir essa complexidade que não tá aparente mas que é bem potente, cheia de relações. Espero que tenham desfrutado de algo e aproveitado alguma coisa da “discussão” do texto e do som, que também é monstro, progressivo, complexo. Essa banda aí ó... Assustadora, no melhor sentido da palavra...


2 de out. de 2015

Spoils [Espólios] - Protest the Hero



Dotados com a arte de a todos os seres nomear,
os humanos decidiram a cada coisa viva dominar

O orgulho como fim, ao começarem a peregrinar, enquanto
rotulam as criaturas captadas pelo amaldiçoado corpo – o consciente cérebro humano

Toda palavra, uma vez escrita, terá perdida a sua intenção
Mesmo cantada, gritada ou proferida, elas traem a significação

A língua é o lamento do coração, uma frágil experiência
pra contornar a solidão inerente à busca pela permanência

Todos os futuros fantasmas que marcam seus nomes no cimento fresco
Dessignificando os significados, ao gritarem para o vazio.

Dessignificando os significados, ao gritarem para o vazio...
As abstrações são a estaca entre a anima e o animus

Descarna a palavra enquanto chaga do destino humano;
Observa o mundo em teu semelhante, a vida é transparência.

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            Esses dias tive que fazer uma prova de espanhol em que havia uma pergunta sobre como eu definiria "un texto citado". Assim que li a questão, me veio na cabeça exatamente essa música. Respondi, automaticamente, algo como “é a expressão da nossa capacidade de transmitir mensagens de terceiros”. Na hora, passei a viajar com a lembrança da música, e fiquei pensando sobre a linguagem verbal, de modo geral... Que é ela quem nos separa definitivamente de qualquer outro animal, é ela quem nos coloca como bruscamente diferentes deles. E é ela que, ao mesmo tempo que permite construir um mundo diferente do animal, de cadeia cíclica da natureza, também assegura uma incapacidade do ser humano de entender a sua essência. Assegura a incapacidade do ser humano de captar e transmitir (nomear) os seus sentimentos, conceitos, referentes pessoais.
A língua, em si mesma, fere a vida orgânica, a troca instintiva-sentimental entre dois humanos, ainda que muitas vezes seja a base sobre a qual essa troca se fundamenta. Afinal, a língua é um fato social, ela é construída, portanto claro que afeta o natural. Lembrei disso tudo porque um dos conceitos da aula dessa prova era que ao transmitir uma mensagem de terceiros, sempre prejudicaremos algum atributo – a entonação, a intenção, a carga que cada palavra carregava em sua fala original , e a língua funciona nessas horas como uma tentativa constante de expressar o mais próximo possível esses atributos. Mas transmitir essa carga é impossível, por mais que adaptemos nossa mensagem. 
O que quero dizer com isso é que diferente dos animais, que só podem se comunicar de maneira totalmente orgânica e direta, os humanos só se comunicam ferindo esse lado comunicativo natural (que, por que não, também possa ser integrante de nossa essência). Ou seja, a língua é ao mesmo tempo construtora e destruidora dos nossos sensos e sentimentos; como um equilíbrio desajustado (equilíbrio por conter os dois atributos ao mesmo tempo; desajustado pelo fato dos mesmo atributos ferirem as intenções reais). E a música aqui em questão trabalha exatamente isso.


            Toda palavra, uma vez escrita, terá perdida a sua intenção / Mesmo cantada ou gritada ou proferida, elas traem a significação”. Na letra original, o trecho é mais algo como “cada palavra, ao ser nomeada, vai cair em sua intenção / falada, cantada, ou gritada, elas trairão o que pretendiam significar”. Ou seja, no próprio momento em que um indivíduo usa uma palavra (um signo), seja para descrever, nomear, expressar algo, esse signo já não será mais a coisa em si, já não será mais a expressão, a coisa descrita, ou seja, a essência se perde. Você já tentou descrever pra alguém o que você sentiu quando ouviu uma música que te balançou a alma?, ou quando viu uma peça de teatro que te tocou profundamente?, ou um poema que arrepiou a espinha? Se já tentou, sabe do que estou falando. Mas por que tentamos? Por que tentamos expressar isso que sentimos com a música/peça/poema? Sendo que a experiência só pôde ocorrer pela sintonia que se estabeleceu entre você e o artista, mais vocês e o ambiente (contexto)...
            A resposta dessa música é: “A língua é o lamento do coração, uma frágil experiência / Para contornar a solidão inerente à busca pela permanência”. Esse trecho pra mim é o mais tocante. Obviamente, não consigo expressar em palavras. Mas é isso! Tentamos prolongar aquilo que sentimos de bom. Buscamos a permanência, mas a língua nada mais é do que uma sempre frágil tentativa disso, tentativa que chega a ser solitária/melancólica. Essa melancolia não é o nosso sentimento em si, mas a tentativa inerentemente frustrante de procurar transmitir aquilo que captamos.
            A permanência aqui pode ser entendida tanto da forma dita acima quanto como uma permanência do próprio ser humano na Terra, entendida mais como a busca do sentido da vida mesmo, que não pode ser suprida por linguagem humana alguma. As duas interpretações se fazem presentes no mesmo verso, mas essa segunda é continuada pela estrofe seguinte: “Todos os futuros fantasmas que marcam seus nomes no cimento fresco / Dessignificando os significados, ao gritarem para o vazio”. É justamente pela língua que podemos pensar sobre o sentido da vida, mas ao invés de nos dar respostas, ela só traz a perturbação deste pensamento; também com a linguagem é que tomamos consciência de que nossa vida não é permanente. Por isso também o lamento do coração. Além disso, os "futuros fantasmas" gritam para o vazio ao marcarem os nomes (tal como pegadas) no cimento fresco pois assim desafiam um atributo natural da vida: a passagem. Dessignificar um significado/sentido pode ser entendido também como uma afronta cega a algum "sentido" não captável que deve haver no caráter passageiro das coisas, uma vez que é natural, ao tentar transforma-lo em permanente. 

         Um outro exemplo sobre a incapacidade desse tipo de transmissão/comunicação pela linguagem são as diferentes ideias que cada um tem sobre um mesmo conceito. Quando lemos num texto algo que fala sobre uma dor, sobre um amor, algo do tipo, cada um lerá isso com um referente pessoal, portanto, apesar de escrito da mesma forma, será um texto diferente para cada um que o leia. Quando, por exemplo, alguém me diz que tem tantos amigos, talvez o conceito que ele carrega de 'amigo' não seja o mesmo daquele que eu carrego. O mais interessante em relação a isso talvez seja quando envolvemos a arte. Às vezes é justamente essa diferença nos referenciais que fazem um texto tocar ou ser mais potente em um alguém X mas não num alguém Y.

Aquilo captado é completamente pessoal e intransferível em essência. O comunicar, o tornar comum, é ferido pela palavra – o que já não acontece com o comunicar através de um abraço, de um entrelaçar de mãos, de um olhar, coisas que exigem em si próprias uma sintonia fina. E aí entra a poesia! Daí a necessidade de transcender a palavra, de transcender a sintaxe, o som, transcender a própria língua através dela mesma, a fim de tentar transmitir aquilo que captamos de alguma forma. Creio que assim construímos as poesias, e o curioso é que, como resultado, temos novamente um novo produto: um novo ser que não a nossa captação em si, mas a materialização dessa tentativa, que acaba tendo potencial para tocar a alma de um outro alguém justamente porque procurou transcender os limites do bruto da língua, durante sua criação.
Daí o trecho final: “Descarna a palavra enquanto chaga do destino humano / Observa o mundo em teu semelhante, a vida é transparência”. Creio que esse trecho se refere justamente às coisas ditas acima: viva mais organicamente, procure a sintonia (a transmissão de sentimentos, ideias, enfins) de forma mais viva, pulsante e de fato real; quando usar das palavras para isso, descarna-as: transcenda-as, pois só assim para a transparência se fazer presente; através da arte é mais possível do que pela concretude do dicionário. Particularmente acho sensacional essa imagem... Descarnar a palavra... Tirar o conceito/expressão/captação do corpo que os aprisiona: o signo; tal como procuramos “descarnar” (não ‘desencarnar’!) aquilo que nos pulsa no espírito.

Uma amiga outro dia me contava sobre uma conversa que teve com outro amigo, que apresentou a ela o conceito de “amizade artística”. Ela me resumiu como sendo algo do tipo "encontrar um aflorar de sua própria criatividade na virtuosidade do outro", criatividade aqui entendida não só como a produção de algo, mas de um olhar criativo para si e para o mundo, um olhar que burle a rotina do bruto. E entendo a arte em si, como dita aqui, sendo meio que isso mesmo. Nessa música, o autor também procura implicitamente valorizar a potência da música enquanto arte, a música como sendo em si própria a expressão, o elo de comunicação. Ela não precisa da concretude das palavras pra transmitir aquilo que irá pulsar o espírito: as ondas sonoras na música, em sintonia com nosso ser (pois que não é só com o ouvido que se ouve), são a própria essência.Tô escrevendo isso aqui porque só esses dias quando revisitei essa música e fui pensando nessas coisas é que pude ver claramente como o sentido mais profundo do termo "artística" pra qualificar essa amizade; como faz todo o sentido isso!

Quanto à primeira parte da música, as duas primeiras estrofes, acabei deixando mais de lado aqui, mas também acho a ideia dela muito foda. Elas passam muito bem a arrogância humana de que, porque podem nomear a tudo (dominar a linguagem), se sentem maiores do que todos, inflando uma prepotência que na verdade é disfarce de sua própria insuficiência. O consciente cérebro humano é também um corpo amaldiçoado por sua própria habilidade (como já foi explorado anteriormente). Sobre a prepotência humana e sua capacidade de autodestruição, há uma outra música dessa mesma banda, também comentada aqui no blog: Sequoia Throne.

Enfim, pessoas! Tentei aqui falar um pouco disso que pra mim é bem profundo e tocante: a insuficiência da linguagem como parte da pequenez humana. Esse ser que é capaz de construir coisas grandiosas, grandes civilizações, artefatos tecnológicos absurdos, conceitos ultra elaborados, mas incapaz de ser inteiro, incapaz de entender seu rumo. Por tudo isso, pra mim, o assunto da linguagem como foi abordado na música é muito mais profundo do que parece. Espero que tenham gostado do som e aproveitado qualquer coisa que seja da discussão!
            Pra finalizar, vou deixar aqui um trechinho lindíssimo de um poema da Adélia Prado, chamado “Antes do nome”, que explora exatamente tudo isso discutido aqui:

                    (...)
            A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda
            foi inventada para ser calada.
            Em momentos de graça, infrequentíssimos,
            se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
            Puro susto e terror.




OBS. #01: “Espólios”, título da música, pode significar “herança”, “produtos de roubos” ou “coisas que não são tomadas numa guerra, ou seja, restos, despojos”. A brisa-interpretação fica por conta aí. =)


OBS. #02: O verso que fala “As abstrações são a estaca entre a anima e o animus.” não foi abordado ao longo do texto porque isso daria um texto gigante só pra trabalhar os conceitos de anima e animus. Esses conceitos são usados pela literatura junguiana (Carl Jung – Psicologia Analítica) e são um tanto complexos. Mas usando aqui muito a grosso modo, “anima” seria o “complemento feminino” inconsciente que todo ser humano de sexo masculino possui, enquanto o “animus” é o “complemento masculino” inconsciente que todo ser humano de sexo feminino possui.
Na minha humilde e breve interpretação, na música, “anima e animus” são tidos de modo mais generalizado, como o inconsciente do indivíduo, o todo do verdadeiro eu interior (“inner self”), em oposição à persona, que é o ser consciente construído social e psicologicamente. Você vai ver que qualquer descrição que der o deixará insatisfeito, o que é claro, afinal aquilo que você é em essência não é nomeável; você pode dizer onde mora, o que faz, como é, etc., mas vai se perguntar “mas eu sou só isso mesmo?”. Tudo isso será apenas a sua “persona”, o seu “eu” – construído moral/socialmente –, mas não o seu “si mesmo”, como chamava Jung. O teu “si mesmo” (a tua essência, entenda isso como quiser) não é possível ser nomeada, e ela faz parte daquelas coisas pessoais e intrasferíveis, tal como o sentir poesia de cada um. Lembrando aquelas coisas sobre transcender, como já dito antes, não a toa os poetas tentam se descrever poeticamente, os pintores procuram pintar autorretratos poeticamente, e assim vai...
Eu entendo esse trecho, tentando resumir bem, também da seguinte maneira:
É abstrata, no nível mais profundo do nosso ser, a diferença entre anima-animus / feminino-masculino. Por isso ela é a estaca. Não há, no nosso âmago, uma divisão opaca, concreta entre anima e animus; animicamente, por possuirmos esse todo (por esse complemento inerente), somos um todo, enquanto seres humanos. E essas coisas, esse estado de comunhão, não se atingem com as palavras (com a carne) mas com a “transparência da vida” (com a abstração). 

[Pra quem quiser se introduzir e começar a se aprofundar um pouco na questão específica do “anima e animus”, sugiro que leiam esta postagem neste blog (Café com Jung). 
Já quem quiser conhecer mais a pesquisa dele (o que recomendo muito!) sugiro que leiam o livro sobre Jung da coleção “L&PM Pocket ENCYCLOPEDIA”, escrito por Anthony Stevens. Ele é baratinho e fácil de encontrar.]